Em artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, nesta terça-feira (29), o professor na Universidade Harvard (EUA) e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, analisa a postura do Brasil após as tarifas de 50% anunciadas pelo presidente americano Donald Trump.
Nada mais tradicional na América Latina do que usar a política exterior como compensação retórica da rendição interna. Sacrificar os interesses do trabalho e da produção aos interesses do rentismo financeiro e do cartel bancário e denunciar os EUA – esta é a fórmula consagrada. Antigamente, o México figurava como exemplo mais claro dessa prática esperta e ruinosa. Há muito tempo o Brasil tomou-lhe o lugar.
Donald Trump e seus auxiliares facilitaram o trabalho dos falsos defensores da soberania brasileira ao demonstrar ignorância das realidades mais elementares do comércio entre os Estados Unidos e o Brasil e ao se meter em assuntos que só a nós dizem respeito. O que teria feito um estadista que ocupasse a Presidência do Brasil? Teria entendido que o país produz nada do que os EUA precisam, mas que eles nos podem ser imensamente úteis na qualificação de nosso aparato produtivo e de nossa gente e em tudo que tem a ver com a economia do conhecimento. Teria começado por evitar de responder aos americanos em linguagem de botequim, esbanjando demagogia e preguiça intelectual, e se mostrado determinado a engajá-los numa discussão séria.
Teria aproveitado a pressão americana para trazer à tona o verdadeiro nó em nossa relação bilateral, que é o fechamento dos serviços. Enquanto nos serviços financeiros estamos na vanguarda do mundo, em todos os outros sofremos o atraso característico de uma economia primarizada. A situação mais grave ocorre fora do mundo empresarial, nas universidades. Se o Brasil se tornar um grande país sem ter uma única universidade de referência mundial, será o primeiro caso na história. E uma das causas principais é ser praticamente impossível contratar professores estrangeiros nas universidades brasileiras.
Há espaço para uma abrangente e audaciosa abertura nos serviços que acabe com nossa exclusão da vanguarda produtiva e tecnológica do mundo. O governo brasileiro proporia ao americano que ele retrocedesse na tarifação de nossas mercadorias em troca da abertura dos nossos serviços, cujo fechamento motiva a reclamação histórica que os americanos fazem ao Brasil. Não há de ser da China, que acintosamente nos vê apenas como fornecedores de alimentos e matérias-primas, que poderemos esperar tal acerto.
Contrariamente ao que relata a imprensa brasileira, a maioria dos especialistas americanos nessa área do direito acredita que, dentro de alguns meses, a maior parte das tarifas que o governo Trump ameaça impor ao mundo será declarada ilegal e inconstitucional, inclusive por juízes indicados pelo próprio presidente. É por causa dessa expectativa que a bolsa americana vem subindo nas últimas semanas. O interesse do Brasil, por paradoxal que pareça, é que essa reviravolta demore a ocorrer para que o jogo de pressões propício ao arranjo que proponho se mantenha por algum tempo.
Assim como no comércio o governo Trump focou no que vê (as mercadorias) e não onde está o problema (os serviços). Também em sua incursão desastrada na política brasileira errou feio na definição do problema.
De fato, a sabedoria republicana desaconselha proscrever da política o líder inconteste de um terço da opinião nacional. E aconselha enfrentar diretamente uma perversão de que ainda não se tem notícia na história constitucional das democracias modernas. O presidente e o Supremo Tribunal Federal se juntaram num bonapartismo de grupo para fazer guerra contra o poder mais representativo da nação —o Congresso— e para dar um golpe de Estado permanente.
Uma das raízes dessa situação está na dinâmica do populismo político, que leva à substituição de soluções estruturais a nossos problemas por políticas compensatórias que custam dinheiro que o Estado não tem. A outra raiz está na composição do STF e na natureza dos ministros.
Recrutados comumente entre cupinchas do presidente, muitos (menos as ministras mulheres) são falastrões, frívolos, vaidosos e narcisistas. Suas confirmações pelo Senado são formalidades. Suas posses são grandes festas, frequentadas pelos endinheirados, sequiosos de seus favores. Lembram os casamentos opulentos nos quais é fácil prever divórcio.
Só há duas respostas a toda essa degradação política e moral. Uma é que o Congresso se respeite e diga: "Basta!". A outra é que, nas eleições de 2026, o povo brasileiro eleja para a Presidência da República um cidadão sério, desassombrado, despojado e capaz que se pareça mais com Prudente de Morais do que com Lula.
Roberto Mangabeira Unger, professor na Universidade Harvard (EUA); ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos
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