*Antônio Ernani Pedroso Calháo
Cuiabá vai ganhar um novo museu. Trata-se de uma iniciativa dos descendentes do casal Maria de Arruda Muller e Júlio Muller.
O antigo casarão da família será transformado em uma Casa-Museu com todo o mobiliário e objetos de arte, como também, a documentação do casal. Tudo será organizado com tecnologia museológica de ponta para que o consulente possa visitar o museu presencialmente e virtualmente.
II. Um pouco da fundamentação teórica do novo museu.
A ideia basilar de uma Casa-Museu são as suas particularidades em um contexto social. Cada uma possui uma particularidade, um tipo de acervo específico que se liga muito ao estilo de vida de seus habitantes e período de vivência. Tudo se move no sentido de uma experiência para o visitante. A sua imersão no espaço conduz a um tempo vivido e, cada qual, elabora a imagética a
partir de seu repertório próprio.
Há uma certa curiosidade natural em conhecer o refúgio doméstico de uma família. O recorte temporal tem seus aspectos míticos contidos na memória social dos personagens que ali viveram.
A partir dessa perspectiva “[...] a casa não é mais apenas um objeto arquitetônico, nem sequer apenas um objeto cultural. A casa se transforma em continente de um conteúdo, em suporte de um significado maior” (HORTA, 1997, p.X).
Uma Casa-Museu, por ser em essência uma casa, não isenta o museu de suas obrigações institucionais. Consiste em uma instituição de guarda que no passado abrigou as vivências e lembranças de uma pessoa/família, ou um local que reconstrói estas memórias. No tópico específico, as vivências contidas nesse imóvel estão sedimentas em dois troncos familiares de real expressão histórica
para Cuiabá: “Ponce de Arruda e Müller”.
Há muito a se explorar em quase 150 anos de vida no casarão da Rua Campo Grande nº º 464. Sua missão engloba a preservação do grande solar, os bens que o guarnecem, mas estes todos organizados em práticas museológicas, pois desta função não se pode prescindir. Além desta importante dimensão há o conteúdo ligado à guarda: deve manter viva a memória ali contida dos seus habitantes, já que estes contém o reflexo do passado/presente de uma parcela da sociedade, satisfazendo a curiosidade dos visitantes em espreitarem aquele arranjo familiar. Há se combinar, necessariamente, a preservação em sua inteireza, com a veracidade para que se retrate a vivência pretendida.
O acervo de objetos de arte e decoração constituem um capítulo à parte do novel Museu-Casa da família Müller. Da melhor prataria até objetos mais íntimos, como anotações de receitas culinárias, faz-nos remeter ao ensinamento de Ecléa Bosi.
Esta considera que em uma casa “tudo é tão penetrado de afetos, móveis, cantos, portas e desvãos, que mudar é perder uma parte de si mesmo; é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver.” (2006: 436). Os primeiros habitantes desta casa que hoje é uma Casa-Museu, já não habitam mais seus cômodos, mas as suas memórias, os seus modos de viver estão presentes e vivos na organização do local e nos objetos que muitas vezes se encarregam de contar esta história.
Afetos. Tudo é afeto no espaço-memória. Na fuligem depositada sobre a madeira, daqueles móveis seculares, estão os vestígios das teias que se formaram no plano das vivências. São redes construída em um locus que se projeta no viver dos moradores do local e conviventes. Há quem afirme que o espaço da casa traz inserido nele a vida de seu proprietário e de seus familiares, que ali viveram por tempo longo ou curto e construíram um espaço com usos e significados próprios.
III. O imóvel
Casarão localizado no Centro Histórico de Cuiabá, na Rua Campo Grande nº 464, construção tipo colonial com 480 m2, em adobes e telhas artesanais moldadas em madeira. Possui um amplo pomar e jardim interno. É um caso raro na museologia. Acervo preservado que conjuga documentação histórica com iconografia de relevante valor estético.
Os ambientes internos são decorados com mobiliários de época. A biblioteca contém um amplo acervo de raridades, como livros autografados, condecorações e títulos honoríficos. Em lugar de destaque está a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Executivo, concedida à D. Maria de Arruda Müller por seu relevante desempenho na educação.
O acervo físico documenta a vida política cuiabana e mato-grossense desde o século XIX. O imóvel foi construído pelo Coronel Júlio Frederico Müller e sua esposa D. Rita Teófila Correa da Costa, pais do Sr. Júlio S. Müller. Nela criaram os seus filhos, alguns dos quais se tornariam nomes importantes da política matogrossense. São eles: Frederico Augusto (nascido em 1884), Frederica Müller (nascido em 1890), Fenelon Müller (nascido em 1892), Júlio Strübing Müller (nascido em 1895), Rita Müller (nascida em 1897) e Filinto Müller (nascido em 1900).
Estrategicamente o MUSEU MARIA DE ARRUDA MÜLLER E JÚLIO MÜLLER está localizado no Centro Histórico de Cuiabá que se notabiliza pela concentração de produtores culturais.
IV. A Mostra Virtual
Os trabalhos iniciarão com uma mostra virtual dos documentos familiares. A concepção da mostra lida com a organização museológica concebida em dois eixos - Museu/Exposição e Imagem/Audiovisual. Perpassa os três elementos fundamentais dos museus: preservação, pesquisa e comunicação.
O tema da mostra virtual se insere no campo da comunicação museológica. As formas de extroversão são múltiplas. Abarcam desde artigos científicos de estudos de coleções, catálogos, material didático em geral, vídeos e filmes, palestras, oficinas e material de divulgação e/ou difusão diversos. Todas essas manifestações são, no museu, comunicação lato sensu.
Contudo, a mostra em comento se concentrará na digitalização do acervo imobiliário (casa em diversas dimensões), mobiliário (móveis e adereços) e documentos digitalizados (fotografias, diplomas, jornais etc.). Todo esse conjunto se encaixa no conceito de patrimônio digital, estabelecido pela Unesco na Carta sobre Preservação do Patrimônio Digital.7 Portanto, a linguagem expográfica será
estritamente digital.
O produto irá para uma plataforma futura de dados museológicos em meio digital para usos variados. É um instrumento de natureza transdisciplinar. Conjuga arte, ciência, tecnologia e história. Poderá ser utilizado para interação de pesquisa. A base, por certo, terá efeito multiplicador no plano da “inteligência artificial.”
V. Os Protagonistas: Júlio S. Müller e Maria de Arruda Muller
Júlio S. Müller se destacou inicialmente como Educador, tendo sido Diretor do Grupo Escolar de Poconé. Sua verdadeira vocação foi a política, tendo ocupado o cargo de prefeito de Cuiabá, deputado estadual, governador e interventor de Mato Grosso durante o Estado Novo (1937-1945). Fundou e foi o primeiro Presidente do Rotary Club de Cuiabá em 1941.
Segundo a Fundação Getúlio Vargas:
Estudou humanidades no Colégio Salesiano de Cuiabá, e em seguida cursou a Academia de Direito da mesma cidade, pela qual se formou. Lecionou alemão no Liceu Cuiabano e depois foi diretor do Grupo Escolar de Poconé, do Grupo Escolar Barão de Melgaço e da Escola Normal Pedro Celestino, todas em seu estado natal.
Em consequência da vitória da Revolução de 1930, foi nomeado prefeito de Cuiabá, tendo assumido também a chefia de polícia e a secretaria geral do estado. Em 1933, decidida a convocação de eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, criaram-se em todos os estados partidos representando os objetivos doutrinários da Revolução de 1930. Em Mato Grosso, foi fundado o Partido Liberal Mato-Grossense, liderado pelo interventor Leônidas Antero de Matos. Júlio Müller participou da primeira comissão executiva do novo partido.
No pleito de outubro de 1934, elegeu-se deputado à Assembleia Constituinte estadual que, além de preparar a Constituição do estado, tinha também a incumbência de eleger o governador de Mato Grosso e dois representantes do estado ao Senado Federal. Desse modo, no dia 7 de setembro de 1935, Mário Correia da Costa foi eleito para chefiar o Executivo mato-grossense.
Em 13 de setembro de 1937, com a morte de Correia da Costa, Júlio Müller foi eleito governador pela Assembleia Legislativa, com mandato até 15 de agosto de 1939. Tomou posse no dia 4 de outubro, tendo administrado o estado como governador constitucional por pouco mais de um mês, já que a implantação do Estado Novo no dia 10 de novembro suspendeu todos os mandatos eletivos do
país. Entretanto, no dia 24 de novembro foi reconduzido ao governo de Mato Grosso, desta vez como interventor federal no estado.
Durante sua gestão, construiu o Hospital Geral, o Colégio Estadual de Mato Grosso e a ponte Júlio Müller, ligando Cuiabá a Várzea Grande. Fundou o Departamento Estadual de Estatística, o Departamento de Saúde Pública e reformou a imprensa estadual. Foi ainda durante seu governo que, em setembro de 1943, foram desmembrados de Mato Grosso os territórios federais de Guaporé (hoje Rondônia) e Ponta Porã. Este último, contudo, voltou a integrar o estado por força da Constituição de 1946.
Cinco dias depois da deposição de Getúlio Vargas (29/10/1945), Júlio Müller foi destituído da interventoria. Além das funções de governo, foi também diretor-presidente da Matoveg, indústria pioneira na fabricação de óleos vegetais e derivados, e se dedicou à
pecuária na região de Várzea Grande.
Foi casado com Maria de Arruda Müller, com quem teve seis filhos.
Maria de Arruda Müller, nascida em Cuiabá em dezembro de 1898, foi alfabetizada aos cinco anos pela família e se tornou conceituada professora, iniciando a docência aos 16 anos.
Sua trajetória no setor educacional fê-la merecedora da Comenda da Ordem Nacional do Mérito Educativo, grau de Grande Oficial, outorgada pelo então Ministro da Educação, Paulo Renato. Ao receber a Comenda, bastante emocionada, D. Maria Müller assim se pronunciou: “Estou extasiada. Nunca poderia imaginar que algo assim aconteceria comigo”, disse.
Ela lembrou que, quando a mãe ia ensinar as letras para seu irmão mais velho, ela gostava de estar sempre por perto, escutando: “Às vezes, minha mãe lhe fazia alguma pergunta; ele errava e eu acertava”, lembrou. Ela também herdou as qualidades do seu avô, Generoso Ponce, uma das grandes lideranças políticas do Estado na virada do século XIX para o XX, e que sempre a presenteava com livros: “Ele me presenteava com livros”, recordou.
Sua vida profissional começou como auxiliar de professora e, com o dinheiro, ajudava a manter a casa. Em abril de 1919, casou-se com Júlio Müller. A lua-de-mel foi uma aventura: seguiu com o marido em carro-de-boi para a Poconé – uma viagem que, naquele tempo, estendia-se por uma semana. Do casamento, nasceram 7 filhos, 23 netos, 57 bisnetos e 5 tataranetos.
Na concepção de Neila Barreto, atual Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso: Maria Ponce de Arruda Muller é uma lição de vida!, visto ter dedicado 76 anos da sua vida aos estudantes cuiabanos. Só deixou as salas de aulas aos 96 anos, com problemas de saúde. Escritora, professora e poetisa, descende da família Arruda, uma das mais tradicionais da cidade de Cuiabá. Em abril de 1919, casou-se com o primeiro interventor do Estado de Mato Grosso, Júlio Strübing Müller.
Maria Müller foi inovadora como ativista cultural. Fundou em 1919 a primeira revista feminista mato-grossense, A Violeta, que circulou na primeira metade do século XX. Assinava a publicação com os pseudônimos de Mary, Chloé, Vampira, Consuelo, Sara, Lucrécia,
Ofélia e Vespertina. Na década de 1930, foi a segunda mulher a integrar os quadros acadêmicos ocupando a cátedra nº 7, patrocinada pelo Cônego José da Silva Guimarães. A acadêmica centenária deixou uma preciosa contribuição intelectual para Mato Grosso.
Comprometida com o social, fundou o Abrigo Bom Jesus de Cuiabá (dos Velhos) e o das Crianças, em primeiro de fevereiro de 1940. Já em 1942, revelando seu lado de ativista feminina, fundou a Sociedade de Proteção à Maternidade e Infância de Cuiabá. Presidiu a LBA – Legião Brasileira de Assistência durante a segunda Guerra Mundial, inclusive providenciando cuidados para com as famílias dos
soldados.
Como escritora, publicou em 1972 o livro 'Família Arruda'. Anos depois, em parceria com a amiga, musicista e poetisa Dunga
Rodrigues, escreveu "Cuiabá ao longo de 100 anos". Outra obra de sucesso foi lançada em comemoração ao centenário de Maria de Arruda Müller. No ano de 1998 ela publicou "Sons Longínquos", uma coletânea de poemas da professora. Os livros e revistas de autoria de Maria Müller a levaram a romper preconceitos. (BARRETO, Neila. https://www.hnt.com.br/artigos/maria-ponce-de-arrudamuller/118339).
VI. A cooperação técnica
Visando transferir experiência e prestar assessoramento ao novo museu foi celebrado o Acordo de Cooperação Técnica – ACT 001/2025 entre a Associação Cuiabana de Cultura – Muxirum Cuiabano e a Associação Museu Maria de Arruda Muller e Júlio Muller. Dentre as finalidades encontram-se a colaboração interinstitucional, tendo por objeto a realização de ações de interesse mútuo, sem
transferência de recursos financeiros entre os parceiros.
*Antônio Ernani Pedroso Calháo - Advogado e Professor. PHD em Direito e Democracia pela Universidade de Coimbra. PHD em Direito pela Universidade de Lisboa. PHD em Línguas Clássicas e Vernáculas. USP. Presidente da Associação Cuiabana de Cultura – Muxirum Cuiabano.
VII. Referências
AFONSO, Micheli Martins Casa-museu, Museu-casa, Casa histórica: um lugar de memórias. Revista Semestral. Ano 1, Jan-Jun. 2016. SEMESTRAL |ANO 1, N. 1, JAN.-JUN. 2016 | ISSN 2357-7495. Disponível em https://revistas.ufpi.br/index.php/voxmusei/article/download/6748/3939. Acesso em 6.5.2025
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: 13. Ed. Companhia das Letras, 2006.
CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005. p. 34.
HORTA, Maria de Lourdes P. A Museologia e o Museu-Casa. Mesa Redonda. 1997. In: Anais dos I Seminário sobre Museus-Casa. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa [em linha]. Disponível em www.museucasaruibarbosa.gov.br. Acesso em 06.5.2025
A UNESCO define Patrimônio Digital na Carta sobre a Preservação do Patrimônio Digital: O patrimônio digital consiste em recursos únicos do conhecimento e expressão humana. Abrange recursos culturais, educacionais, científicos e administrativos, assim como técnicos, legais e médicos e outros tipos de informação criada digitalmente, ou convertidos de sua forma analógica original à forma digital. Quando “nascidos em forma digital”, não existe outro formato além do objeto digital original. Materiais digitais incluem textos, bases de dados, imagens estáticas ou em movimento, áudios, gráficos, software, e páginas Web, entre uma ampla e crescente variedade de formatos. Eles geralmente são efêmeros e requerem produção, manutenção e gerenciamento intencionais para serem preservados. Muitos desses materiais são de valor e significância duradouros, e por isso constituem um patrimônio que deve ser preservado para as gerações atual e futuras. Este patrimônio existe em qualquer língua, qualquer parte do mundo e em qualquer área do conhecimento e expressão humanos. (grifo nosso) Disponível em < http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Produto%203%20aprovado_BR12.p df> Acesso em 07/05/2025
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